sábado, 21 de fevereiro de 2009

O PROCESSO PENAL BRASILEIRO

O Código de Processo Penal

Após a vigência das Ordenações do Reino de Portugal (do Século XVI ao início do século XIX), nossa primeira legislação codificada foi o Código de Processo Criminal de Primeira Instância, em 1832, merecendo registro também algumas disposições processuais previstas na Constituição Imperial de 1824, que lhe antecedeu. A tanto não retrocederemos, porém.

A perspectiva histórica que mais nos interessa, exatamente porque até hoje ainda nos alcança, situa-se em meados do século XX, mais precisamente no ano de 1941, com a vigência do nosso, ainda atual (quanto à vigência!), Código de Processo Penal.

Inspirado na legislação processual penal italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, o CPP brasileiro foi elaborado em bases notoriamente autoritárias, por razões óbvias e de origem. E nem poderia ser de outro modo, a julgar pelo paradigma escolhido e justificado, por escrito e expressamente, pelo responsável pelo projeto, Ministro Francisco Campos, conforme se observa em sua Exposição de Motivos.

Na redação primitiva do CPP, até mesmo a sentença absolutória não era suficiente para se restituir a liberdade do réu, dependendo do grau de apenação da infração penal (o antigo art. 596). Do mesmo modo, dependendo da pena abstratamente cominada ao fato, uma vez recebida a denúncia, era decretada, automaticamente, a prisão preventiva do acusado, como se realmente do culpado se tratasse (o antigo art. 312).

Aliás, é o que ocorre, hoje, com a legislação dos crimes resultantes de organizações criminosas (Lei n. 9.034/95), dos crimes de lavagem de dinheiro (Lei n. 9.613/98) e do Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/03), a vedar a concessão de liberdade provisória.

No ponto, a registrar recente inovação (Lei n. 11.464, de março de 2007) que, alterando o art. 2°, II, da Lei dos crimes hediondos - Lei n. 8.072/90 - passou a permitir a aplicação do art. 310, parágrafo único, do CPP (Liberdade provisória sem fiança), limitando-se a vedar a concessão da fiança.

Logo veremos que o Supremo Tribunal Federal, parcialmente, é certo, vem cuidando de limitar determinados excessos legislativos, a priori, ou seja, sem o exame de cada caso concreto, a restituição à liberdade daquele que foi preso em flagrante, embora venha sinalizando, também, que a previsão constitucional de inafiançabilidade para determinados delitos possa cumprir tal missão (a de vedação, em abstrato, da liberdade provisória). Nesse ponto, aludida jurisprudência retrocede.

O princípio fundamental que norteava o CPP era, como se percebe, o da presunção da culpabilidade. Manzini, penalista italiano que ainda goza de grande prestígio entre nós, ria-se daqueles que pregavam a presunção de inocência, apontando uma suposta inconsistência lógica no raciocínio, pois, dizia ele, como justificar a existência de uma ação penal contra quem seria presumivelmente inocente?

Evidentemente, a aludida dúvida somente pode ser explicada a partir de um pressuposto: o de que o fato da existência de uma acusação implicava juízo de antecipação de culpa, presunção de culpa, portanto, já que ninguém acusa quem é inocente!

Vindo de uma cultura de poder fascista e autoritário, como aquela do regime italiano da década de 1930, nada há de se estranhar. Mas a lamentar há muito. Sobretudo no Brasil, onde a onda policialesca do CPP produziu uma geração de juristas e de aplicadores do Direito que, ainda hoje, mostram alguma dificuldade em se desvencilhar das antigas amarras.

É claro que é - e sempre será - muito difícil compartilhar interesses tão opostos como aqueles representados pela necessidade de aplicação da lei penal (enquanto ela existir) e o exercício da liberdade individual. Por isso é muito importante identificar as premissas teóricas da legislação de 1941, para reconhecer sua vigência, ou não, diante de vista normativo, hierarquicamente superior a outra, como ocorre entre a norma constitucional e a legislação ordinária, mas sobretudo, porque com a identificação da realidade histórica em que foram produzidos os respectivos textos se poderá entender melhor as inúmers incompatibilidades existentes entre ambos.

Então, de modo mais explícito, aponta-se no CPP as seguintes e mais relevantes características:

a) o acusado é tratado como potencial e virtual culpado, sobretudo quando existir prisão em flarante, para a qual, antes da década de 1970, smente era cabível liberdade provisória para crimes afiançáveis, ou quando presente presunção de inocência, consubstanciada na possível e antevista existência de causas de justificação (estado de necessidade, legítima defesa, etc) na conduta do agente (art. 310, caput);

b) na balança entre a tutela da segurança pública e a tutela da liberdade individual, prevalece a preocupação quase exclusiva com a primeria, com o estabelecimento de uma fase investigatória agressivamente inquisitorial, cujo resultado foi uma consequente exacerbação dos poderes dos agentes policiais;

c) a busca da verdade, sinalizada como a da verdade real, legitimou diversas práticas autoritárias e abusivas por parte dos poderes públicos. A ampliação ilimitada da liberdade de iniciativa probatória do juiz, justificada como necessária e indispensável à busca da verdade real, descaracterizou o perfil acusatório que se quis conferir à atividade jurisdicional. Essa parece ser a razão pela qual Jacinto Nelson Miranda Coutinho, ilustre processualista, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, insiste em conceituar o nosso modelo processual como de natureza preferencialmente inquisitorial.

d) o interrogatório do réu era realizado, efetivamente, em ritmo inquisitivo, sem a invervenção das partes, e exclusivamente como meio de prova, e não de defesa, estando o juiz autorizado a valorar, contra o acusado, o seu comportamento no aludido ato, seja em forma de silêncio (antiga redação do art. 186 e o ainda atual art. 198, já revogado implicitamente), seja pelo não comparecimento em juízo. É autorizada, então, a sua condução coercitiva (art. 260 do CPP). Como veremos, a Lei n. 10.792/2003, nesse ponto (o do interrogatório), produziu profundas mudanças na matéria, alterando expressamente o disposto no art. 186 do CPP, e, agora, por incompatibilidade, também a previsão do art. 198 do CPP.

É preciso registrar, porém, que na década de 1970, mais precisamente nos anos 1973 e 1977, houve grandes alterações no CPP, iniciadas, aliás, com a Lei n. 5.349/67, por meio das quais foram flexibilizadas inúmeras regras restritivas do direito à liberdade. Mais recentemente, então, com as Leis 11.689, 11.690 e 11.719, todas de junho de 2008, a legislação processual penal sofreu novos e grandes ajustes, cujas alterações serão apreciadas a seu tempo e no espaço temático adequado.



Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, 11ª edição, LumenJuris, 2009.

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